SALA DOS PROFESSORES
Copiar palavras “erradas” é sinal de falta de atenção?
Por: Marisol Saucedo Lage | Psicopedagoga Institucional – 24 de maio de 2018.
Muitas vezes, alguns educadores e famílias afirmam que o aluno é distraído, pois “erra” quando copia equivocadamente a palavra da lousa. A suspeita de desatenção fica mais forte ainda quando o aluno escreve errado a palavra que está logo na linha acima de sua escrita.
No entanto, é necessário ter cautela para afirmar que o erro ortográfico é sinal de déficit de atenção ou distração.
Para refletir sobre essa situação, é importante compreender os processos que abrangem a ação da leitura/escrita em relação aos “erros ortográficos”.
Segundo Smith (1999), os leitores mudam o ponto de fixação quatro vezes por segundo. O cérebro necessita de um segundo para completar a identificação dos quatro ou cinco letras que podem ser vistas em uma única olhada. Isso quer dizer que, quando copiamos alguma palavra, não o fazemos letra por letra, se assim fosse, leríamos sílaba por sílaba e comprometeríamos a fluência e compreensão.
Um bom leitor, na concepção do pesquisador, pode captar 17 sinais simultâneos, aproximadamente. O estudioso afirma que à medida que nos tornamos leitores fluentes e competentes, aprendemos a ativer mais aquilo que já sabemos, ou seja, vemos o início da palavra e, de acordo com o tema, repertório e cerne do texto, antecipamos as palavras no ato de ler. Antecipar é uma das habilidades importantes para a fluidez e compreensão durante a leitura. Isso significa que nós “lemos” significados, e não letras. Veja o exemplo abaixo:
Esse é um dado relevante para compreender que, nessas circunstâncias, o “erro” ortográfico, ou melhor, a escrita não convencional, pode acontecer, pois assim como não lemos letra por letra, não copiamos letra por letra. Repare que ler e escrever desse modo, nada econômico, só acontece quando nos deparamos com palavras desconhecidas, que não fazem parte do nosso repertório ou de outro idioma.
Ocorre que durante a leitura buscamos significados em um processo global, portanto o registro da palavra lida pelos alunos é produto da hipótese de escrita deles. Isso sucede frequentemente com as palavras que falamos de uma maneira e escrevemos de outra. Por exemplo, falamos durmir, no entanto, escrevemos dormir, dizemos animau, caranavau e escrevemos animal – carnaval, pessoua e escrevemos pessoa, ou seja, o aluno “erra” porque pensa, porque tem hipóteses. Esses “erros” são considerados construtivos, esperados nos primeiros anos do fundamental I, após o trabalho dos professores com foco na ortografia, tornando observáveis as palavras, levantando princípios e regularidades, o aluno tem a oportunidade de construir o sistema.
No contexto bilíngue – seja ele inglês, espanhol, francês ou italiano – alguns “erros” também são esperados, pois é normal que aconteça a interferência das línguas, principalmente nos primeiros anos de contato com a língua adicional.
Steven Pinker (2002), cientista canadense, propõe o bootstrapping* bilingual, atividade intencional na qual o aluno tem a oportunidade de comparar as línguas e estabelecer princípios que regem cada uma delas. Já a pesquisadora Karen Beeman propõe como atividade uma “ponte” na qual compara as línguas (materna e adicional) com o objetivo de enfatizar o que elas têm em comum e suas diferenças. Ambas são oportunidades riquíssimas para desenvolver a consciência metalinguística, isto é, pensar, analisar a língua e colocar atenção em alguns aspectos linguísticos, como fonológicos, lexicais etc.
Como podemos concluir, os erros ortográficos em tais perspectivas são frutos da elaboração e reflexão da criança, não por déficit de atenção ou distração. Seja no contexto mononlíngue ou bilíngue, o importante é favorecer oportunidades nas quais os nossos alunos possam estar em contato com a escrita, analisá-la e refletir sobre o seu sistema.
O chamado efeito São Mateus**, como definiu Keith Stanovich (apud Sanchez, Emilio. A Língua escrita e suas dificuldades; uma visão integradora. p. 99), ajuda a compreender que, para avançar na leitura e na escrita, é necessário colocar em jogo o melhor de nós.
Dessa maneira, Stanovich aponta que se os alunos leem e escrevem pouco, terão menos oportunidades de observar as regularidades que apresentam os textos, as palavras, o sistema e seu próprio comportamento em relação a eles.Consequentemente, terão uma baixa capacidade de leitura e expressão escrita.
Em seus estudos, a pesquisadora comparou sujeitos que leem pouco e que apresentam bom nível intelectual com sujeitos que leem muito e de menor nível intelectual. Suas pesquisas constataram que os últimos apresentam vantagens em diferentes provas de vocabulário e conhecimentos; assim, constatou-se que o contato com o impresso pode compensar diferenças na capacidade intelectual.
Eis a importância de incentivar e proporcionar o acesso à leitura.
*Bootstrapping é um termo de origem inglesa que se originou na década de 1880 como um acessório para ajudar a calçar botas, e gradualmente adquiriu uma coleção de significados metafóricos adicionais. O tema comum a todos esses significados é a realização de um processo sem ajuda externa, mas com etapas de facilitação interna. Hoje em dia, tornou-se uma metáfora bastante utilizada. https://pt.wikipedia.org/wiki/Bootstrapping acesso 10/04/2016
**Keith Stanovich utilizou para se referir a esses efeitos cumulativos, a parábola dos talentos do Evangelho de São Mateus. Na realidade e embora às vezes se interprete a parábola no sentido de que quanto mais se tem, mais se terá, e quanto menos, menos terá, o sentido é muito mais sutil e relevante. Como se recordará, segundo essa parábola, o dono da casa inicia uma longa viagem e recomenda sua fazenda a seus criados. A um, ele entrega cinco talentos, a outro, dois talentos e a um terceiro, um talento. Quando volta para casa, recebe seus criados e lhes pede que prestem contas. O que recebeu cinco talentos devolve-lhe os cinco e outros cinco que obteve após negociar com eles. O que recebeu dois entrega esses mesmos dois e outros dois de lucro. Finalmente, o que recebeu um, temeroso de perdê-lo, guardou-o e, na volta de seu senhor, só pode lhe oferecer o mesmo talento que havia recebido. A resposta do amo é contundente: “porque a todo que tem, lhe será dado e ainda sobrará, mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado” (Mt 25,29). A parábola ensina, em última análise, que “cada um deve render conforme seu talento. Portanto, se a pessoa não expõe seu talento, qualquer que seja, até o que tem lhe será tirado”. (retirado de “A Língua escrita e suas dificuldades; uma visão integradora” Emilio Sanchez p. 112)
Bibliografia
BEEMAN, Karin. Teaching for Biliteracy: Strengthening Bridges between Languages. Philadelphia: Caslon Publishing, 2012.
CARVALHO, C. S. Construindo a Escrita. São Paulo: Editoral Ática, 2017.
COLL. C organizador. Desenvolvimento psicológico e educação – Transtorno de desenvolvimento e necessidades educativas especiais vol. 3. 2º edição. Porto Alegre: Artmed, 2010.
DEHAME, S. Os neurônios da Leitura. Porto Alegre: Penso, 2012. PARADIS, Johanne; GENESSE, Fred; GRAGO, Martha. Dual Language Development Disorders: A Handbook on Bilingualism & Second Language Learning. 2a ed. Baltimore: Brookes, 2011.
SMITH, F. Leitura Significativa. Porto Alegre: Editora Artes Médicas Sul Ltda, 1999.
SNOWLING. M.J. A Ciência da Leitura. Porto Alegre: Penso, 2013.
PINKER. S, O instinto da Linguagem: como a mente cria a linguagem, 1a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.