Feira do Livro
Encontro pós-feira com Rodrigo Lacerda
Por: Tatiana Maria de Paula Silva | 22 de agosto de 2017.
O editor, escritor e tradutor Rodrigo Lacerda esteve no Colégio Miguel de Cervantes para falar com os alunos do 9º ano sobre a edição comemorativa de O homem invisível, clássico de H.G. Wells lançado pela editora Zahar, com tradução dele e de Alexandre Barbosa. A edição traz o texto integral, apresentação especial de Thiago Lins, notas comentadas e a cronologia da vida e obra do autor.
No encontro, Rodrigo falou sobre a obra, o impacto do gênero ficção científica na literatura e sua proximidade com o cinema. “A ficção científica faz parte do nosso imaginário desde cedo, e O homem invisível, A máquina do tempo (também de H.G. Wells) são títulos que têm o poder de entrar no imaginário coletivo da humanidade. O escritor pode almejar várias glórias, querer ganhar o Prêmio Jabuti ou Nobel, pode querer ficar milionário ou ter muita fama, mas entrar nesse imaginário, em minha opinião, é o maior prêmio que um escritor pode ter.”
O autor falou sobre a importância das diversas áreas do conhecimento no processo criativo do escritor. Segundo ele, transitar entre as áreas de humanas e exatas é um grande privilégio para quem quer desenvolver uma obra de ficção científica. Ele afirma que H.G Wells é uma prova disso, pois se consagrou como escritor, mas antes foi assistente de farmácia e professor de biologia. Essas experiências com as ciências deram a ele o repertório para escrever as obras que o eternizaram.
Sobre a obra, Rodrigo falou do seu caráter cômico e inusitado e da reflexão acerca da invisibilidade: “Para que a gente quer ser invisível? Basicamente para ficarmos impunes, fazermos nossas vontades sem sermos flagrados ou castigados. É uma qualidade ambígua que, por um lado, é libertadora e, por outro, pode ser usada para o mal. E é essa ambiguidade que H.G. Wells trabalha na obra. Quais armas o indivíduo precisa ter para ser livre e ao mesmo tempo fazer parte do coletivo de uma maneira construtiva, saudável para os dois lados? O homem invisível caminha tão drasticamente para o lado da individualidade absoluta através da sua invisibilidade que vira uma pessoa cuja sociedade repele, persegue e tenta castigar. Também é verdade que ele rouba, mata e tira a liberdade dos outros. H.G Wells está usando um material científico para produzir uma obra humanista cuja função na nossa formação pessoal é nos obrigar a pensar os limites da nossa liberdade, bem como a coletividade à qual pertencemos”.
Entrevista com Rodrigo Lacerda:
Qual o principal desafio na tradução de uma obra clássica para aproximar o público jovem desse tipo de leitura?
No caso de um livro como O homem invisível não é um grande desafio, pois se trata de uma obra muito atraente. A ficção científica por definição é um tema que os jovens adoram. A linguagem do H. G. Wells não é complicada, embora uma hora ou outra tenha uma explicação científica. Mas, perto do que era Júlio Verne, 60 anos antes dele, Wells é muito mais fácil de entender. A carga de explicação científica é muito menor, pois se trata de um livro mais leve em relação à leitura, diferente de outros clássicos que podem ser mais complicados, como Os Lusíadas, de Camões, no qual há uma linguagem que, mesmo sendo um português de Portugal, nos dias de hoje, é difícil de entender. Outro exemplo são as obras de Shakespeare, as quais mesmo um jovem inglês dos anos 2000 tem dificuldades de entender. O que é importante levar em conta é que, em se tratando de obras como as de Shakespeare, a língua está em outro estágio do seu desenvolvimento, de modo que essa realmente não é uma situação em que o autor é mais ou menos complicado. O que está em questão nesse caso é que a língua em si era meio outra. As posições das palavras são diferentes, as frases se estruturam de outra forma. Muitas palavras são reconhecíveis, mas o significado delas há 400 anos era diferente do que é hoje. Dessa forma, existem obstáculos práticos, mas mesmos esses podem ser resolvidos com as notas de rodapé. Na tradução é necessário atualizar esse vocabulário sem desvirtuar o original, mas também sem reproduzir barreiras desnecessárias. Alguns tradutores optam por traduzir Shakespeare como se o autor estivesse recitando palavras de mármore ou ouro, aquela coisa solene e formal. Embora acreditando que eles estão sendo fiéis ao Shakespeare, na minha opinião, não estão. Embora a linguagem daquela época nos pareça enobrecida, na verdade era uma linguagem popular. É um equívoco muitas vezes dar essa aura, essa grandeza aos clássicos, porque na sua origem não era assim que a coisa era lida. Um exemplo concreto foi quando eu e um amigo traduzimos Os três mosqueteiros. Entre Athos e Dartagnan existe uma relação de pai e filho (enquanto Athos é um homem mais velho, Dartagnan é um jovem aprendiz de mosqueteiro), mas no original em francês todos eles se tratam por “vós”. Acontece que para nós, do século XXI, “vós” aqui no Brasil é um tratamento formal, que distancia as personagens. Isso pode deixar o leitor com a impressão de que entre o Athos e o Dartagnan há uma relação de muita cerimônia, mas não é nada disso. Trata-se apenas um hábito da época que mudou. Nessa obra, nós optamos por deixar entre os amigos o tratamento “você”, usando “vós” somente quando eles falam com o rei, com o cardeal, enfim, quando está implicada uma relação subalterna e existe uma hierarquia nítida entre os personagens. Aí sim a gente usava o “vós”, mas é um pequeno ajuste que é muito mais fiel ao original do que se eu traduzisse igualzinho, porque o espírito não estaria correto.
Por que a escolha de O homem invisível?
Nessa coleção tentamos trabalhar com um conceito de clássico bem amplo. Temos obras como Os três mosqueteiros, um romance popular publicado em jornal, em forma de folhetim, em capítulos lançados ao longo de um ano e meio. Temos também um clássico mais nobre, como Édipo rei, de Sófocles, uma tragédia grega da Antiguidade (século V a.C.). Na outra ponta, temos romances mais populares, como Tarzan e Frankenstein, mais próximos de nós. O homem invisível é um desses livros que estão mais próximos de nós. É uma obra que você pode até nunca ter lido a história, pode até nunca ter visto uma das adaptações cinematográficas ou televisivas, mas, bem ou mal, você sabe do que se trata. Seu personagem faz parte do imaginário coletivo universal, assim como Os três mosqueteiros. Um exemplo se verifica naquele filme indiano bastante popular, Quem quer ser um milionário?. A personagem principal, quando criança, em uma favela indiana, fazia com os amigos uma brincadeira, que era a dos três mosqueteiros. Ela obviamente nunca leu o livro e muito provavelmente nunca viu o filme, pois a condição de miséria em que vivia era tamanha que a gente duvida que tenha tido acesso a isso, mas certamente ela conhece a história. Tarzan todo mundo sabe quem é, o homem invisível todo mundo sabe quem é. Todo mundo tem uma ideia de um jeito ou de outro e já entrou em contato com isso. Se não viu o filme ou não leu o livro, viu o disco ou o tio um dia contou a história. Há também o caso de Harry Potter, que os jovens adoram. Você encontra um fragmento desse imaginário na capa da invisibilidade, por isso, penso que estávamos predestinados a esse título. Conheci o autor da apresentação, que é o Thiago Lins, um homem muito mais jovem do que eu, especialista em histórias em quadrinhos, em cultura pop e apaixonado por O homem invisível. A ideia originalmente é que o Thiago fosse o tradutor, mas ele não pôde na época. Foi aí que eu pedi para ele escrever a apresentação. Eu acredito que quando você encontra a pessoa certa para desenvolver o projeto é porque chegou a hora de desenvolver, pois depois as pessoas têm outros compromissos, ou somem, ou vão morar em outros lugares, perdem o contato etc. A vida tem que ser quando a oportunidade aparece, e você deve aproveitar. Assim sendo, quando ele apareceu e sugeriu O homem invisível, eu imediatamente apresentei o projeto na editora. Aprovado, foi proposto a ele a tradução. Como ele não pôde, escreveu a apresentação. O fator decisivo de fazer a obra foi o contato com o Thiago, mas a natureza do livro já era muito próxima da coleção. Eles acabariam se encontrando em alguma hora.
Rodrigo Lacerda é doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP. Atualmente é consultor geral da editora Zahar, onde também é responsável pela publicação de clássicos da literatura universal. Recebeu também o Prêmio Jabuti de tradução por O conde de Monte Cristo e Os três mosqueteiros, publicados pela Zahar em parceria com André Telles. Dos seus trabalhos como pesquisador, nasceu, em 1995, a novela histórica O Mistério do Leão Rampante, ganhadora de dois prêmios: Certas Palavras, da Caixa Econômica Federal, e o Jabuti de Melhor Romance. Em 1996, lançou A Dinâmica das Larvas, obra em que aborda suas impressões sobre o mundo editorial. Recebeu o prêmio de Melhor Livro Juvenil da Biblioteca Nacional, Prêmio Jabuti, Prêmio da FNLIJ pelo romance O fazedor de velhos, lançado em 2008, obra lida e apreciada por muitos alunos do Colégio Miguel de Cervantes. Trabalhou como editor na Edusp, Nova Aguilar e na Cosac & Naify.