Reflexos da literatura espanhola na brasileira: o malandro como releitura do pícaro
Por: Eduardo Wanderley Monte Vieira da Cunha | 28 de setembro de 2017.
A partir do século XVI, surge um novo tema na literatura espanhola: a novela picaresca. Esse novo gênero literário trata das aventuras de uma personagem que sofre pela sua condição socioeconômica, de tal maneira que precisa enganar as pessoas de sua sociedade para sobreviver. Essas personagens receberam o nome popular de pícaro (provém daí o nome novela “picaresca”) e eram considerados anti-heróis. Uma das novelas picarescas mais conhecidas do mundo é sem dúvidas La vida del Lazarillo de Tormes, escrita por um autor anônimo do século XVI. A personagem principal, o pícaro, chama-se Lázaro, e é um jovem de origem humilde, cuja mãe o entrega a um velho sábio (seu amo) para que ensine a ele como sobreviver mesmo sem possuir muito dinheiro. Entretanto, Lázaro não demora para se desfazer do velho, e foge no início da história, passando a sobreviver por conta própria. Durante a narrativa, o pícaro engana diversas personagens para levar a melhor em todas as situações e poder sobreviver. Há um momento em que ele precisa roubar pão de um clérigo que o contratou para não passar fome, o que evidencia a ideia da necessidade de sobrevivência como motivação para trapacear na vida. Busca também sempre um novo amo para ascender socialmente, até que no final da trama consegue uma vida estável junto à sua nova esposa. A obra apresenta diversas situações que claramente fazem uma crítica à sociedade da época, revelando as injustiças sociais e criticando a religião e a honra, chegando a ser proibida pelo Tribunal da Inquisição.
Na literatura brasileira, se vê a criação do malandro, que possui certas semelhanças em relação ao pícaro. Entretanto, eles diferem em alguns aspectos. O primeiro surge no início do século XIX, em uma das obras mais renomadas da literatura brasileira, Memórias de um sargento de milícias. Diferentemente do pícaro, o malandro não “trapaça” pela necessidade de sobreviver, e sim pela sua esperteza e desejo de levar o melhor das situações da vida que lhe são impostas. A personagem principal do clássico de Manuel Antônio de Almeida chama-se Leonardo (o malandro), filho de um português que vem ao Brasil e que é criado por seu padrinho, um homem mais organizado e trabalhador que seu pai. O menino vem a se tornar um sujeito trapaceiro que busca sempre oportunidades para se dar bem na vida, porém sem precisar trapacear para sobreviver, o faz apenas por sua esperteza. A malandragem de Leonardo pode ser vista durante toda a obra, fugindo sempre do trabalho, envolvendo-se com a esposa de um de seus patrões e ajudando um outro malandro a escapar da polícia (mesmo Leonardo sendo um membro do batalhão da polícia do Rio de Janeiro nessa parte da narrativa).
Comparando o malandro ao pícaro, é possível observar a discrepância entre as razões que incentivam Lázaro e Leonardo a trapacearem na vida. O primeiro o fazia porque realmente precisava sobreviver, enquanto o segundo não possuía a sobrevivência em jogo, buscando meramente se dar bem com a sua esperteza.
É interessante notar que as ações de Leonardo em Memórias de um sargento de milícias podem ser observadas na sociedade brasileira até hoje. Não é raro ouvir falar do famoso “jeitinho brasileiro”, no qual seus praticantes colocam sempre os seus interesses em primeiro lugar diante das situações cotidianas, não se importando muito com a situação do outro. Isso pode ser visto em ações que vão desde furar fila e estacionar veículos em vagas de deficientes sem necessidade até escândalos de corrupção na política brasileira, que não são um mistério para mais ninguém. Afinal, o malandro ainda é uma triste realidade da cultura brasileira, mesmo dois séculos após a sua primeira aparição na literatura.
Fontes:
– Livro “Lazarillo de Tormes”, editora ANAYA. Adaptação de Juan Manuel Infante Moraño e ilustrações de Isabel Arechabala.
– https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/memorias-de-um-sargento-de-milicias-resumo-da-obra-de-manuel-antonio-de-almeida/
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